sábado, 28 de agosto de 2010

O porte de arma desmuniciada constitui crime?

O tipo penal do artigo 14 da lei 10.826/03 prescreve que "Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar" configura crime, um ilícito penal de mera conduta e de perigo abstrato, ou seja, aquele em que não é necessário qualquer resultado material, bem como o perigo é presumido, eis que o simples fato de portar a arma (para não citar todos os verbos do núcleo do tipo, posto que aqui se trata especificamente do porte), mesmo desmuniciada, é suficiente para condenação criminal.

Para adentrar melhor na questão (polêmica), destaca-se o seguinte trecho do voto proferido pela Ministra Ellen Gracie no HC 99.449/MG, in verbis:

"O fato de estar desmuniciada não a desqualifica como arma, tendo em vista que a ofensividade de uma arma de fogo não está apenas na sua capacidade de disparar projéteis, causando ferimentos graves ou morte, mas também, na grande maioria dos casos, no seu potencial de intimidação" [1].

No citado Habeas Corpus, a relatora decidiu pela tipicidade da conduta, denegando, consequentemente, a ação impetrada, sob a justificativa de que o legislador, nos crimes de perigo abstrato, busca "antecipar a punição de fatos que apresentam potencial lesivo à população - como o porte de arma de fogo em desacordo com as balizas legais -, prevenindo a prática de crimes como homicídios, lesões corporais, roubos etc.", portanto "sendo irrelevante o fato de a arma estar carregada ou não" [2].

Aludido entendimento, data venia, configura uma posição legalista [3], verdadeira interpretação da letra fria da lei. Em que pese o voto da eminente relatora, esse entendimento não deve prosperar, haja vista ser inconstitucional "pois não se pode restringir direitos fundamentais básicos como a liberdade ou o patrimônio sem que seja para tutelar concretas ofensas a outros direitos fundamentais" [4].

O porte de arma desmuniciada deve ser analisado sob o prisma da ofensividade (também conhecido como princípio da lesividade), que traduz o seguinte:

"O fato cometido, para se transformar em fato punível, deve afetar concretamente o bem jurídico protegido pela norma; não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado - nullum crimen sine injuria" [5].

A norma jurídica penal deve ser lastreada por um aspecto valorativo, ou seja, a norma existe para a proteção de um valor que fundamenta o injusto penal; coligado com o princípio da ofensividade, afirma-se que o crime exige desvalor da ação, caracterizado pela realização de uma conduta valorada negativamente, bem como o desvalor do resultado, caracterizado pela afetação concreta de um bem jurídico [6].

Isso demonstra que a norma penal deve ser valorada ao ser interpretada, caso a caso (exigência da tipicidade objetiva material). Ademais, atualmente a tipicidade é analisada com base em diversas exigências [7], sendo que na ausência de qualquer delas o fato é atípico.

Nesse contexto, não há que se falar em crime quando não se evidencia materialidade delitiva, porquanto não há ofensividade; esse princípio confirma a ausência de perigo abstrato no âmbito do Direito Penal. Assim é que para os que não consideram o princípio da ofensividade, o porte de arma desmuniciada configura crime [8].

Pela posição constitucionalista (teoria esta que é muito mais garantista [9]) para ser considerado um crime, este deve se revestir de ofensividade (lesividade) ao bem jurídico protegido, pois a "norma existe para tutelar um bem jurídico e sem ofensa a esse bem não há delito" [10].

Vivemos num Estado Democrático de Direito em que o Direito Penal deve ser lido através da Constituição Federal, o que significa dizer que os direitos fundamentais não podem sofrer violação (em regra), de modo que outros ramos do Direito podem e devem cuidar de casos de atos lesivos com a mesma eficiência [11], deixando para a órbita penal somente quando houver efetiva e concreta lesão a bens jurídicos mais importantes, pois o Direito Penal configura o remédio mais extremo de punição dentro de um ordenamento jurídico, por implicar na privação da liberdade dos indivíduos [12].

Assim, como não há crime sem ofensa ao bem jurídico, o porte de arma desmuniciada não deve configurar um delito, haja vista que sequer se constata nesta conduta um resultado jurídico lesivo, sendo inadmissível um resultado jurídico presumido.

Referências:

CANAL, Verônica Correia. Atipicidade dos crimes de porte de arma desmuniciada e a posse de munição: exclusão da tipicidade material. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/.

GOMES, Luiz Flávio. Princípios constitucionais reitores do direito penal e da política criminal. Disponível em: http://www.lfg.com.br/

SANTOS, Carla Maia. O porte de arma desmuniciada e a posse de munição. Disponível em: http://www.lfg.com.br/

Notas:

[1] Nesse caso, entendo que num eventual crime de roubo, por exemplo, a utilização de arma sem munição pelo agente se enquadraria no caput do artigo 157, em forma de grave ameaça, e não no parágrafo segundo do mesmo dispositivo, pois sequer possui potencialidade lesiva.

[2] No mesmo sentido vide HC 147.623/RJ e HC 90.197/DF.

[3] "Os legalistas admitem o perigo abstrato. Os constitucionalistas refutam esse modelo de perigo. Para os legalistas o porte de arma sem munição é delito. Para os constitucionalistas o relevante é o perigo concreto". SANTOS, Carla Maia. O porte de arma desmuniciada e a posse de munição. Disponível em: http://www.lfg.com.br/. Acesso em: 10 jun. 2010.

[4] GOMES, Luiz Flávio. Princípios constitucionais reitores do direito penal e da política criminal. Disponível em: http://www.lfg.com.br/. Acesso em: 10 jun 2010.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem.

[7] Tipicidade objetiva formal, tipicidade objetiva material e tipicidade subjetiva.

[8] GOMES, Luiz Flávio. Princípios constitucionais reitores do direito penal e da política criminal. Disponível em: http://www.lfg.com.br/. Acesso em: 10 jun. 2010.

[9] O Sistema Garantista, resumidamente, caracteriza-se pela tutela dos direitos fundamentais e limitação do poder estatal.

[10] GOMES, Luiz Flávio. Princípios constitucionais reitores do direito penal e da política criminal. Disponível em: http://www.lfg.com.br/. Acesso em: 10 jun. 2010.

[11] Trata-se do princípio da necessidade, integrante do Sistema Garantista, consistente no fato de que o Direito Penal não deve intervir sempre, ele é ultima ratio.

[12] CANAL, Verônica Correia. Atipiciade dos crimes de porte de arma desmuniciada e a posse de munição: exclusão da tipicidade material. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/. Acesso em: 10 jun. 2010.

Felipe Pinto Bruno - Advogado inscrito na OAB/DF, Pós-graduando em Ciências Penais pelo curso LFG - Brasília.

Nenhum comentário:

Postar um comentário