terça-feira, 26 de outubro de 2010

O dolo e a culpa fazem parte da culpabilidade ou da tipicidade ou de ambas?

Inicialmente, cumpre registrar o que vem a ser dolo e culpa, culpabilidade e tipicidade. Dolo indica “sobretudo, vontade de produzir o resultado. Mas não é só. Também há dolo na conduta de quem, após prever e estar ciente de que pode provocar o resultado, assume o risco de produzi-lo” [1]. A culpa, por sua vez, constitui a inobservância de cuidado objetivo por parte do agente, seja por negligência, imprudência ou imperícia, isto é, atua através da criação de riscos proibidos [2].

A culpabilidade pressupõe “juízo de reprovação que recai sobre o agente do fato que podia se motivar de acordo com a norma e agir de modo diverso, conforme o Direito” [3], enquanto a tipicidade significa “a coincidência entre dado comportamento humano e a norma penal incriminadora” [4].

Feitas essas breves considerações, indaga-se: dolo e culpa fazem parte da culpabilidade, da tipicidade ou de ambas? Adentrando as teorias do Direito Penal, é possível fazer o seguinte esboço antes de se chegar a uma conclusão, uma opinião definitiva.

Pela teoria causal da ação (Von Liszt, Beling) adotava-se a teoria psicológica da culpabilidade. Esta, que tinha como pressuposto a imputabilidade, era “o vínculo existente entre o agente e seu delito, que se dava ou pelo dolo ou pela culpa. Dolo e culpa faziam parte da culpabilidade” [5]. Aqui, a culpabilidade é puramente psicológica, desprovida de “qualquer valoração e esgota-se na simples constatação da posição do agente perante sua própria conduta” [6].

A teoria neokantista [7], posteriormente, veio a conceber a “culpabilidade bipolarmente: ela é subjetiva e normativa ao mesmo tempo. Acolhe-se, então, a teoria psicológico-normativa da culpabilidade” [8]. Assim, a culpabilidade não era somente psicológica (imputabilidade + dolo ou culpa), mas também normativa (exigibilidade de conduta diversa), ou seja, “a culpabilidade agora é vista como juízo de reprovação, no entanto, não se transformara ainda num puro juízo de valoração” [9]; ainda assim, dolo e culpa continuavam a integrar a culpabilidade.

Já a teoria finalista da ação (Welzel) deslocou dolo e culpa para a tipicidade, afirmando que ambos “pertencem à conduta e em conseqüência ao fato típico: é requisito subjetivo ou normativo do tipo” [10]. Assim, a culpabilidade “transformou-se em juízo puramente normativo. É juízo que recai sobre o agente do fato” [11], daí que se adotou em nossa sistemática a teoria normativa pura da culpabilidade [12].

Uma quarta teoria, chamada teoria complexa da culpabilidade, sustenta estar dolo e culpa na tipicidade e na culpabilidade, ou seja, “o dolo e a culpa possuiriam dupla função dentro do Direito penal: fariam parte da tipicidade e também seriam valorados no âmbito da culpabilidade” [13]; daí ser chamada de complexa.

Pelo exposto, em que pese os entendimentos das teorias descritas, que muito contribuíram para a evolução do Direito Penal, o mais razoável é que a doutrina finalista supera as demais no que tange à culpabilidade, haja vista que o Direito Penal deve ser interpretado de modo a se valorar cada conduta, cada ação. Desse modo é que:

O Direito Penal não pode ser tido como uma mera ciência de proteção de interesses objetivos e formais. Muito pelo contrário, o Direito Penal não é apenas um catálogo de crimes e penas, mas sim e substancialmente o sustentáculo da ordem e garantia dos princípios fundamentais da vida organizada e para que o Direito Penal consiga cumprir sua relevante finalidade social, suas normas deverão ser sentidas, isto é, mais que compreendidas. [14]

Por derradeiro cumpre registrar que a culpabilidade, por ser juízo de desaprovação pela conduta do agente, não merece ter uma concepção meramente psicológica da culpabilidade, o que seria “uma concepção incolor, naturalística, fria, incapaz de adequar-se à rica casuística das situações para ver se é possível um juízo de reprovação e até que ponto”[15]. Portanto, como bem assinala nosso Código Penal, a teoria adotada acerca da culpabilidade é a do finalismo – embora não sejam observados de forma exclusiva os elementos dessa teoria em nosso Código-, eis que a culpabilidade é puro juízo de valor sobre o agente do fato. Isso explica o porquê de dolo e culpa serem afastados da culpabilidade e integrarem o tipo:

(...) sendo puro juízo de censura, não pode a culpabilidade abrigar em seu seio requisitos subjetivos ou psicológicos; logo, o dolo, que é psicológico, é afastado do âmbito da culpabilidade e passa a compor o tipo subjetivo dos delitos dolosos. A culpa, do mesmo modo, como forma de conduta humana, também passa a fazer parte do tipo nos crimes culposos. [16]

Referências

AMARAL JÚNIOR, Ronald. Culpabilidade como princípio. Disponível em: www.ibccrim.org.br.

GOMES, Luiz Flávio. Teorias causalista, finalista e constitucionalista do delito (síntese das distinções). Disponível em: www.lfg.com.br. Acesso em 9 julho 2010.

GOMES, Luiz Flávio, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito Penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, v. 2.

GOMES, Luiz Flávio, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. BIANCHINI, Alice. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. São Paulo: RT, 2007, v. 1.

MASSON, Cleber Rogério. Direito penal esquematizado: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2009.

QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito penal: parte geral. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

NOTAS:

[1] MASSON, Cleber Rogério. Direito penal esquematizado: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2009, p. 248.

[2] Em linhas gerais, dolo e culpa têm seu significado extraído do artigo 18 do Código Penal.

[3] GOMES, Luiz Flávio, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito Penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, v. 2, pp. 408-414.

[4] QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito penal: parte geral. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 177.

[5] GOMES, Luiz Flávio, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito Penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, v. 2, pp. 408-414.

[6] Ibidem.

[7] Essa teoria significou “a última modificação sistemática do sistema naturalista, caracterizando-se pela visão normativa de valor do Direito Penal. É o abandono do naturalismo ou positivismo para a introdução no Direito Penal do normativismo axiológico”. GOMES, Luiz Flávio, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Op. cit.

[8] GOMES, Luiz Flávio, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. BIANCHINI, Alice. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. São Paulo: RT, 2007, v. 1, pp. 520-539.

[9] GOMES, Luiz Flávio, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito Penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, v. 2, pp. 408-414.

[10] GOMES, Luiz Flávio. Teorias causalista, finalista e constitucionalista do delito (síntese das distinções). Disponível em: www.lfg.com.br. Acesso em 9 julho 2010.

[11] GOMES, Luiz Flávio, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. BIANCHINI, Alice. Op. cit.

[12] “ O dolo e a culpa, assim, não fazem parte da culpabilidade; eles passam a ser “objeto da valoração” da culpabilidade. Eles integram o tipo e uma vez ausentes o fato é atípico”. GOMES, Luiz Flávio, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Op. cit.

[13] Ibidem.

[14] Apud AMERICANO, Odin. Da culpabilidade normativa. Estudos de Direito e Processo Penal em homenagem a Nélson Hungria. Rio de Janeiro-São Paulo: Forense, 1962, p. 359. AMARAL JÚNIOR, Ronald. Culpabilidade como princípio. Disponível em: www.ibccrim.org.br.

[15] Apud Bettiol. GOMES, Luiz Flávio, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Op. cit.

[16] Ibidem.


Felipe Pinto Bruno - Advogado inscrito na OAB/DF, Pós-graduando em Ciências Penais pelo curso LFG - Brasília.