domingo, 29 de maio de 2011

Constranger vítima, mediante grave ameaça e, no mesmo contexto fático, manter tanto conjunção carnal como coito anal, constitui um ou vários crimes?


Inicialmente, cumpre registrar que pela antiga redação do Código Penal, os crimes de estupro e atentado violento ao pudor encontravam-se tipificados nos artigos 213 e 214, respectivamente. Constituíam crimes autônomos, ou seja, jurisprudência majoritária da época considerava que havia concurso material de crimes (artigo 69 do CP) quando um agente praticava as duas condutas no mesmo contexto fático, portanto as penas eram somadas. Entendia-se, ainda, que não poderia ser considerado crime continuado, já que sequer eram da mesma espécie (embora fossem do mesmo gênero, não estavam inseridos na mesma espécie).

Com o advento da Lei nº 12.015 de 7 de agosto de 2009 [1], esses crimes passaram a integrar um único tipo penal; o legislador realizou uma integração entre ambos, revogando o artigo 214, reeditando no artigo 213 do Código Penal o seguinte: “Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.”

A partir dessa alteração passou-se a discutir o seguinte: se um sujeito, no mesmo contexto fático, constrangesse a mesma vítima, mediante grave ameaça, e mantivesse com ela tanto conjunção carnal como coito anal, tal fato constituiria crime único (CP, art. 213, com a redação dada pela Lei 12.015/2009) ou uma pluralidade de crimes (concurso de crimes)?

A questão não é das mais simples. O STJ, entre suas próprias turmas, e o STF, têm sustentado posicionamentos divergentes. Três correntes buscam explicar aludido questionamento.

Uma primeira corrente, representada pela 5ª Turma do STJ, sustenta que o crime nessas condições continuaria a ser punido pelo concurso material de crimes, ou seja, a mesma posição de antes da entrada em vigor da nova lei [2]. Alegam a teoria do tipo misto cumulativo, em que a prática de mais de uma conduta descrita no tipo, embora reunidas no mesmo artigo de lei, serão punidas individualmente, com a soma das penas [3]. E mais: o crime não seria continuado, em face da teoria da penetração diferente, pois não haveria nexo causal entre os fatos sucessivos (o que é um equívoco).

Já a 6ª Turma do STJ entende que tal fato constituiria crime único “em virtude de que a figura do atentado violento ao pudor não mais constitui um tipo penal autônomo, ao revés, a prática de outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal também constitui estupro” [4], ficando a pena agravada dentro dos limites mínimo e máximo, ou seja, o juiz fixaria a pena de acordo com maior ou menor reprovabilidade da conduta, se um ou mais atos fossem praticados contra a mesma vítima [5].


Por derradeiro, a corrente sustentada pelo STF é de que o crime seria único, admitindo-se a hipótese de crime continuado [6].

É possível afirmar que o novo artigo 213 do CP traduz um tipo penal misto cumulativo unitário, por possuir vários núcleos/verbos/condutas descritas no tipo, que quando se trata do mesmo contexto fático, mesma vítima e mesmo bem jurídico o crime é único (e não uma pluralidade de crimes), mas o cometimento de mais de um verbo do tipo gera ofensas intensas, consequentemente o maior desvalor do resultado [7].

Por essa razão, se um crime é praticado através de várias condutas inseridas no artigo 213, o delito será único (lembrando que no caso se trata de mesma vítima e mesmo contexto fático). Contudo, caberá ao magistrado, quando da dosimetria da pena, na análise do artigo 59 do CP, medir o desvalor do resultado e aplicar pena superior caso comparado a um delito em que houve apenas a conjunção carnal, por exemplo.

Acertada, então, as decisões do STF e da 6ª Turma do STJ, e equivocado o entendimento da 5ª Turma do STJ, que bem andou ao sustentar que quando várias condutas são realizadas o fato deve receber maior reprovabilidade [8], contudo pecou ao concluir pelo concurso material de crimes e ao não admitir a tese de crime continuado.

Referências:

GOMES, Luiz Flávio. Estupro e atentado violento ao pudor: crime único ou concurso de crimes? Disponível em: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20100630213144106.

NOTAS:

[1] Lei dos crimes contra a dignidade sexual; antes tratava-se de “crimes contra os costumes”. Menciona-se, ainda, o fato de que tanto o homem quanto a mulher podem figurar no pólo passivo e ativo do crime, enquanto que anteriormente, a redação do Código Penal conferida ao estupro, somente a mulher poderia ser vítima e o homem o autor.

[2] Ver HC 104.724-MS e HC 78.667-SP.

[3] GOMES, Luiz Flávio. Estupro e atentado violento ao pudor: crime único ou concurso de crimes? Disponível em: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20100630213144106. Acesso em: 24 out. 2010.

[4] Ibidem.

[5] “(...) a prática de outro ato libidinoso não restará impune, mesmo que praticado nas mesmas circunstâncias e contra a mesma pessoa, uma vez que caberá ao julgador distinguir, quando da análise das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do CP para fixação da pena-base, uma situação da outra, punindo mais severamente aquele que pratique mais de uma ação integrante do tipo, pois haverá maior reprovabilidade da conduta (juízo da culpabilidade) quando o agente constranger a vítima à conjugação carnal e, também, ao coito anal ou qualquer outro ato reputado libidinoso.” Ver HC 144.870-DF.

[6] Ver HC 86.110-SP.

[7] Ao contrário do tipo misto cumulativo, há o tipo alternativo, em que a prática de várias condutas descritas no tipo não geram maior desvalor do fato. Isso significa que, por exemplo, alguém que se enquadre em mais de um verbo do tipo penal do artigo 33 da Lei 11.343/06 (Lei de drogas) será punido pela mesma intensidade que alguém que pratique apenas um dos diversos verbos contidos no tipo.

[8] “Referida Quinta Turma levou em conta o maior desvalor do fato (quando várias condutas são praticadas: coito vaginal e coito anal), mas se esqueceu completamente dos outros critérios: mesmo contexto fático, mesma vítima e mesmo bem jurídico”. Optou pelo tipo penal misto cumulativo concursal, “quando não se trata do mesmo contexto fático ou da mesma vítima ou do mesmo bem jurídico”, enquanto deveria se valer do tipo penal misto cumulativo unitário. GOMES, Luiz Flávio. Estupro e atentado violento ao pudor: crime único ou concurso de crimes? Disponível em: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20100630213144106. Acesso em: 24 out. 2010.

Felipe Pinto Bruno - Advogado inscrito na OAB/DF, Pós-graduando em Ciências Penais pelo curso LFG - Brasília.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

No caso de lesão corporal leve, praticada pelo marido contra a mulher, há necessidade de representação por parte da vítima?

Ab initio, cabe um apontamento: o fato de haver uma lei que proteja a mulher (Lei nº 11.340/06 – Lei Maria da Penha) não é inconstitucional. O princípio da isonomia deve ser interpretado sob o enfoque do tratamento igual para os iguais, e desigual para os desiguais (isonomia material). Isso significa que as mulheres, por serem a parte mais frágil de uma relação familiar, necessitam de uma lei que as amparem frente à ação dos homens que, mesmo com toda evolução da sociedade, regridem no tempo e tratam-nas com inferioridade, senão como objeto. Nesse ponto, cabe analisar se no caso de lesão corporal leve cometida pelo marido contra a mulher a sua representação é imprescindível ou não.

Ora, se visto como um direito da mulher – e é assim que deve ser visto – cabe tão somente a ela “decidir se lhe interessa ou não ver o ente de sua família, que eventualmente a agrediu, preso e processado criminalmente pelo Estado” [1]. Sob um enfoque sociológico, cita-se casos em que “a prisão do esposo da vítima é providência que desampara a própria vítima, tirando de casa a única pessoa provedora de alimentos” [2] e casos em que “a vítima que já passa por dificuldades financeiras, se vê obrigada a desfalcar mais ainda a economia do lar, para pagar a fiança do esposo agressor, que foi preso pela Polícia sem que assim quisesse a vítima agredida” [3]. Ademais, no caso de lesões recíprocas, mútuas, chegaríamos ao absurdo de, no caso de nenhum deles querer representar, a mulher ser liberada e o homem ver-se processado obrigatoriamente, bem como uma lesão corporal leve cometida contra criança ou um idoso depender de representação, e não de forma incondicionada [4].

Daí que até por razões de política criminal se faz necessária a representação da mulher para ver processado seu agressor, “até porque, retroceder a ponto de entender como incondicionada referida Ação Penal seria contrariar a tendência mundial de um Direito Penal fincado na idéia de um Direito Penal mínimo e subsidiário. Estaríamos é acabando com um dos meios de restaurar a paz no lar, indo contra a idéia da lei” [5]. No mesmo sentido:

“[...] cabe à mulher, dotada de capacidade e discernimento, avaliar a conveniência ou não do prosseguimento do processo contra seu agressor. Se a vítima se retrata (em ato solene e formal, perante o juiz e o promotor), afirmando que não deseja o prosseguimento do processo, pois a paz voltou a reinar no lar conjugal, melhor não seria o Estado respeitar essa vontade e por fim ao processo? [...] Sendo possível a continuidade da família, seria razoável a interferência estatal no lar conjugal? E a produção da prova em juízo, não seria dificultada, ante a manifesta vontade da vítima em não processar o agressor?” [6]

De outra sorte, surge o posicionamento daqueles que entendem ser de ação penal pública incondicionada. Sob o ponto de vista destes, a Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95) não se aplicaria no caso de lesão corporal contra mulher, uma vez que o artigo 41 da Lei Maria da Penha prescreve a não aplicação da Lei dos Juizados Especiais (que instituiu a ação penal pública condicionada aos casos de lesões corporais simples em seu art. 88), ou seja, houve uma derrogação do artigo 88 da Lei nº 9.099/95 em face da Lei Maria da Penha. Assim, a atuação do Estado seria obrigatória, mesmo que contra o interesse da vítima, portanto de ação penal pública incondicionada.


Imperioso destacar que a vedação a que se refere o artigo 41 da Lei nº 11.340 “restringe-se à exclusão do procedimento sumaríssimo e das medidas despenalizadoras” [7] da Lei dos Juizados Especiais, como vem julgando o STJ. Frise-se, ainda, que com a edição da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) foi incluído no Código Penal o parágrafo 9º ao artigo 129 que “se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade” a pena é de 3 meses a 3 anos, ou seja, fora da aplicação do âmbito dos Juizados Especiais, já que a pena máxima supera os 2 anos exigidos pela Lei nº 9.099/95 como de menor potencial ofensivo. Logo, a ação penal é pública incondicionada, mesmo no caso de lesão corporal leve. Por certo deve, sim, vigorar a Lei Maria da Penha, ampliando ainda mais os direitos da mulher.


Contudo, entendo que sua aplicação deveria ser tida com observância de diversos preceitos e princípios, dentre eles o da proporcionalidade e razoabilidade. Isso significa que a lei protetora da mulher no âmbito familiar - em especial nos crimes de lesão corporal leve, objeto do tema abordado – deveria ser aplicada de acordo com a necessidade e vontade da vítima, mediante representação para prosseguir ou não com o feito, tendo em vista sempre a manutenção harmoniosa da instituição família. Ocorre que com a inclusão do parágrafo 9º ao artigo 129 do Código Penal, a natureza da ação para esse crime passou a ser pública incondicionada.


Recentemente, entretanto, o STJ tem adotado o posicionamento de que a Lei Maria da Penha não descaracterizou a natureza da ação penal por crime de lesões corporais leves, que continua sendo pública condicionada à representação da vítima, sob a alegação de que “reconhecer a incondicionalidade da ação quanto aos delitos de lesão corporal simples significaria retirar da vítima o direito de relacionar-se com o parceiro escolhido, ainda que considerado ofensor”[8]. Em caso de eventual pressão do ofensor para que a vítima não prosseguisse com o feito, nosso ordenamento se vale do artigo 16 da lei Maria da Penha, sendo que “a retratação da ofendida somente poderá ser realizada perante o magistrado, o qual terá condições de aferir a real espontaneidade da manifestação apresentada” [9]. Nesse sentido, andou bem a jurisprudência; quando a ação é pública incondicionada, cria-se uma barreira para qualquer tentativa de conciliação.


A esfera penal deve sempre receber valoração e não uma interpretação legalista, de modo frio, a obedecer fielmente a letra da lei. O direito penal e processual penal são mais do que isso; são instrumentos que protegem garantias básicas dos cidadãos, o que requer maior cuidado na hora de repassar os fatos para o papel e processar alguém.

Referências:

MOREIRA, Rômulo de Andrade. O STJ, a Lei Maria da Penha e a ação penal nas lesões leves - uma nova orientação. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/39171. Acesso em: 29 ago. 2010.

REZENDE, Reinaldo Oscar de Freitas Mundim Lobo. Da necessidade de representação no crime de lesão corporal leve praticado nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/24966. Acesso em: 29 ago. 2010.

RUFATO, Pedro Evandro de Vicente. Lei Maria da Penha. Lesão corporal leve. Natureza da ação penal. Com a palavra, o STJ. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2272, 20 set. 2009. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13536. Acesso em: 30 ago. 2010

Sítio do STJ: www.stj.jus.br

NOTAS:

[1] REZENDE, Reinaldo Oscar de Freitas Mundim Lobo. Da necessidade de representação no crime de lesão corporal leve praticado nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/24966. Acesso em: 29 ago. 2010.

[2] REZENDE, Reinaldo Oscar de Freitas Mundim Lobo. Da necessidade de representação no crime de lesão corporal leve praticado nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/24966. Acesso em: 29 ago. 2010.

[3] REZENDE, Reinaldo Oscar de Freitas Mundim Lobo. Da necessidade de representação no crime de lesão corporal leve praticado nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/24966. Acesso em: 29 ago. 2010.

[4] MOREIRA, Rômulo de Andrade. O STJ, a Lei Maria da Penha e a ação penal nas lesões leves - uma nova orientação. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/39171. Acesso em: 29 ago. 2010.

[5] REZENDE, Reinaldo Oscar de Freitas Mundim Lobo. Da necessidade de representação no crime de lesão corporal leve praticado nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/24966. Acesso em: 29 ago. 2010.

[6] RUFATO, Pedro Evandro de Vicente. Lei Maria da Penha. Lesão corporal leve. Natureza da ação penal. Com a palavra, o STJ. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2272, 20 set. 2009. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13536. Acesso em: 30 ago. 2010

[7] REsp 109704 /DF. Relator Ministro Jorge Mussi. Terceira seção. STJ. Publicação DJe: 21/05/2010.

[8] AgRg no REsp 1120965/MG. Relator Ministro Og Fernandes. Sexta Turma. STJ. Publicação DJe: 31/05/2010.

[9] REsp 109704 /DF. Relator Ministro Jorge Mussi. Terceira seção. STJ. Publicação DJe: 21/05/2010.

Felipe Pinto Bruno - Advogado inscrito na OAB/DF, Pós-graduando em Ciências Penais pelo curso LFG - Brasília.