segunda-feira, 24 de maio de 2010

É válida a investigação criminal direta do Ministério Público no contexto do Sistema Acusatório?

Como sabido, o constituinte brasileiro optou pela adoção do sistema acusatório em nosso ordenamento jurídico que, mesmo não vindo expressamente dito na Carta Magna, verifica-se a opção pelo modelo através da leitura do artigo 129, inciso I de seu texto legal, ao estabelecer ao Ministério Público o exercício da ação penal.
Ademais, observam-se princípios e garantias de ordem democrática insculpidos na Constituição, como o devido processo legal, imparcialidade do julgador, ampla defesa, contraditório etc, de modo a tornar mais garantista a atuação do processo penal, que deve limitar e legitimar o poder Estatal de punir, isto é, tornar viável e equilibrada a aplicação de pena bem como ser um efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais, fruto de grandes conquistas do homem, para proteger o cidadão dos poderes do Estado.
Tudo isso implica um modelo de Estado Democrático de Direito, que aponta como elemento principal a dignidade da pessoa humana.
Diante de tais argumentos, surge uma questão que vêm dividindo doutrina e jurisprudência no cenário atual: se é válida a investigação criminal direta do Ministério Público no contexto do Sistema Acusatório.
A resposta deve ser “não”. Não é válida a atuação do Ministério Público diretamente na persecução criminal, pelo menos em face do sistema acusatório, que rege nosso processo penal.
Vislumbra-se que tal argumento se impõe porque cabe ao Ministério Público o controle externo da atividade policial - “o que não significa a substituição da presidência da investigação, conferida ao delegado de carreira” [1] -, sendo esta uma forma de assegurar o sistema acusatório, onde cada um cumpre seu papel, sua função, sem adentrar na esfera de atribuições do outro e contaminar – se não o processo – sua própria consciência com um pré-julgamento do caso.
Deve o promotor, portanto, acompanhar as investigações e requisitar diligências quando necessário, jamais avocando para si a responsabilidade de investigar diretamente, apurando um crime; deve sempre fazê-lo de longe, apenas fiscalizando a atividade policial e interferindo somente para solicitar alguma diligência, assegurando, assim, que o acusado terá seus direitos resguardados.
Nesse contexto, Aury Lopes Jr.[2] aduz que:
[...] por falta de uma norma que satisfatoriamente defina o chamado controle externo da atividade policial [...], não podemos afirmar que o Ministério Público pode assumir o mando do inquérito policial, mas sim participar ativamente, requerendo diligências e acompanhando a atividade policial.

Caso o membro do Parquet realizasse diretamente a investigação, quem lhe fiscalizaria e quem garantiria os direitos do acusado? Haveria plena desigualdade das partes, tendo o juiz que intervir diretamente no inquérito para controlar a atividade investigativa do promotor, desvirtuando totalmente o sistema acusatório. O Poder Judiciário estaria fazendo as vezes do Ministério Público, entrando em contato com os autos antes da fase processual, o que poderia interferir no julgamento do magistrado. [3]
Portanto, o certo é que a Constituição atribui ao membro do Ministério Público a função de exercer o controle externo da atividade policial, e não o de substituí-la.
Ademais, não devem ser tidos como válidos e legítimos argumentos tais como “quem pode o mais, pode o menos” (teoria dos poderes implícitos) pelo qual um órgão com maiores poderes/atribuições pode exercer uma atividade de menor expressão, ou seja, muitos entendem que se cabe ao Ministério Público promover a ação penal, estaria ele legitimado a realizar diretamente a investigação. Contudo, estas são competências diversas, em que a Constituição se encarregou de explicitar quais seus titulares.
Outro ponto que merece atenção é o fato de o inquérito policial ser instrumento meramente facultativo e dispensável para propositura da ação penal. Em que pese esse entendimento, impossível aproveitar-se disso para afirmar que o Ministério Público realize a investigação. Não há a figura do promotor-inquisidor em nosso ordenamento jurídico.
De mais a mais, a Constituição Federal já se encarregou de atribuir à polícia a apuração de infrações penais, como dispõe o artigo 144, § 1º, incisos I e IV, e § 4º, da Constituição Federal, sendo forma da garantia constitucional do devido processo legal. [4]
Por derradeiro, tendo em vista a adoção do sistema acusatório, típico de um Estado Democrático de Direito, não deve ser tida como correta a interpretação da possibilidade de o Ministério Público investigar diretamente um crime, haja vista que sua presença na condução do inquérito é apenas “secundária, acessória e contingente”,[5] eis que aludida tarefa cabe à polícia judiciária.
Além disso, como afirma Nucci, “o sistema processual penal foi elaborado para apresentar-se equilibrado e harmônico, não devendo existir qualquer instituição superpoderosa”.[6] Seria uma quebra do garantismo, demonstrando nítido retrocesso; inconcebível uma instituição que zela pelos direitos e garantias fundamentais agir ilimitadamente na produção de provas para, posteriormente, per se, acusar.

Referências:
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 5. ed. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.




[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 81.
[2] LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 5. ed. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 259.
[3] “Ao transformar a investigação preliminar numa via de mão única, está-se acentuando a desigualdade das futuras partes, com graves prejuízos para o sujeito passivo. É convertê-la em uma simples e unilateral preparação da acusação, uma atividade minimalista e reprovável, com inequívocos prejuízos para a defesa.” LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 5. ed. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 249.


[4] “Note-se, ainda, que o art. 129, III, da Constituição Federal, prevê a possibilidade do promotor elaborar inquérito civil, mas jamais inquérito policial.” NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 81.
[5]LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 5. ed. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 260.
[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 81.
Felipe Pinto Bruno - Advogado inscrito na OAB/DF, Pós-graduando em Ciências Penais pelo curso LFG - Brasília.

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