terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

No caso de lesão corporal leve, praticada pelo marido contra a mulher, há necessidade de representação por parte da vítima?

Ab initio, cabe um apontamento: o fato de haver uma lei que proteja a mulher (Lei nº 11.340/06 – Lei Maria da Penha) não é inconstitucional. O princípio da isonomia deve ser interpretado sob o enfoque do tratamento igual para os iguais, e desigual para os desiguais (isonomia material). Isso significa que as mulheres, por serem a parte mais frágil de uma relação familiar, necessitam de uma lei que as amparem frente à ação dos homens que, mesmo com toda evolução da sociedade, regridem no tempo e tratam-nas com inferioridade, senão como objeto. Nesse ponto, cabe analisar se no caso de lesão corporal leve cometida pelo marido contra a mulher a sua representação é imprescindível ou não.

Ora, se visto como um direito da mulher – e é assim que deve ser visto – cabe tão somente a ela “decidir se lhe interessa ou não ver o ente de sua família, que eventualmente a agrediu, preso e processado criminalmente pelo Estado” [1]. Sob um enfoque sociológico, cita-se casos em que “a prisão do esposo da vítima é providência que desampara a própria vítima, tirando de casa a única pessoa provedora de alimentos” [2] e casos em que “a vítima que já passa por dificuldades financeiras, se vê obrigada a desfalcar mais ainda a economia do lar, para pagar a fiança do esposo agressor, que foi preso pela Polícia sem que assim quisesse a vítima agredida” [3]. Ademais, no caso de lesões recíprocas, mútuas, chegaríamos ao absurdo de, no caso de nenhum deles querer representar, a mulher ser liberada e o homem ver-se processado obrigatoriamente, bem como uma lesão corporal leve cometida contra criança ou um idoso depender de representação, e não de forma incondicionada [4].

Daí que até por razões de política criminal se faz necessária a representação da mulher para ver processado seu agressor, “até porque, retroceder a ponto de entender como incondicionada referida Ação Penal seria contrariar a tendência mundial de um Direito Penal fincado na idéia de um Direito Penal mínimo e subsidiário. Estaríamos é acabando com um dos meios de restaurar a paz no lar, indo contra a idéia da lei” [5]. No mesmo sentido:

“[...] cabe à mulher, dotada de capacidade e discernimento, avaliar a conveniência ou não do prosseguimento do processo contra seu agressor. Se a vítima se retrata (em ato solene e formal, perante o juiz e o promotor), afirmando que não deseja o prosseguimento do processo, pois a paz voltou a reinar no lar conjugal, melhor não seria o Estado respeitar essa vontade e por fim ao processo? [...] Sendo possível a continuidade da família, seria razoável a interferência estatal no lar conjugal? E a produção da prova em juízo, não seria dificultada, ante a manifesta vontade da vítima em não processar o agressor?” [6]

De outra sorte, surge o posicionamento daqueles que entendem ser de ação penal pública incondicionada. Sob o ponto de vista destes, a Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95) não se aplicaria no caso de lesão corporal contra mulher, uma vez que o artigo 41 da Lei Maria da Penha prescreve a não aplicação da Lei dos Juizados Especiais (que instituiu a ação penal pública condicionada aos casos de lesões corporais simples em seu art. 88), ou seja, houve uma derrogação do artigo 88 da Lei nº 9.099/95 em face da Lei Maria da Penha. Assim, a atuação do Estado seria obrigatória, mesmo que contra o interesse da vítima, portanto de ação penal pública incondicionada.


Imperioso destacar que a vedação a que se refere o artigo 41 da Lei nº 11.340 “restringe-se à exclusão do procedimento sumaríssimo e das medidas despenalizadoras” [7] da Lei dos Juizados Especiais, como vem julgando o STJ. Frise-se, ainda, que com a edição da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) foi incluído no Código Penal o parágrafo 9º ao artigo 129 que “se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade” a pena é de 3 meses a 3 anos, ou seja, fora da aplicação do âmbito dos Juizados Especiais, já que a pena máxima supera os 2 anos exigidos pela Lei nº 9.099/95 como de menor potencial ofensivo. Logo, a ação penal é pública incondicionada, mesmo no caso de lesão corporal leve. Por certo deve, sim, vigorar a Lei Maria da Penha, ampliando ainda mais os direitos da mulher.


Contudo, entendo que sua aplicação deveria ser tida com observância de diversos preceitos e princípios, dentre eles o da proporcionalidade e razoabilidade. Isso significa que a lei protetora da mulher no âmbito familiar - em especial nos crimes de lesão corporal leve, objeto do tema abordado – deveria ser aplicada de acordo com a necessidade e vontade da vítima, mediante representação para prosseguir ou não com o feito, tendo em vista sempre a manutenção harmoniosa da instituição família. Ocorre que com a inclusão do parágrafo 9º ao artigo 129 do Código Penal, a natureza da ação para esse crime passou a ser pública incondicionada.


Recentemente, entretanto, o STJ tem adotado o posicionamento de que a Lei Maria da Penha não descaracterizou a natureza da ação penal por crime de lesões corporais leves, que continua sendo pública condicionada à representação da vítima, sob a alegação de que “reconhecer a incondicionalidade da ação quanto aos delitos de lesão corporal simples significaria retirar da vítima o direito de relacionar-se com o parceiro escolhido, ainda que considerado ofensor”[8]. Em caso de eventual pressão do ofensor para que a vítima não prosseguisse com o feito, nosso ordenamento se vale do artigo 16 da lei Maria da Penha, sendo que “a retratação da ofendida somente poderá ser realizada perante o magistrado, o qual terá condições de aferir a real espontaneidade da manifestação apresentada” [9]. Nesse sentido, andou bem a jurisprudência; quando a ação é pública incondicionada, cria-se uma barreira para qualquer tentativa de conciliação.


A esfera penal deve sempre receber valoração e não uma interpretação legalista, de modo frio, a obedecer fielmente a letra da lei. O direito penal e processual penal são mais do que isso; são instrumentos que protegem garantias básicas dos cidadãos, o que requer maior cuidado na hora de repassar os fatos para o papel e processar alguém.

Referências:

MOREIRA, Rômulo de Andrade. O STJ, a Lei Maria da Penha e a ação penal nas lesões leves - uma nova orientação. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/39171. Acesso em: 29 ago. 2010.

REZENDE, Reinaldo Oscar de Freitas Mundim Lobo. Da necessidade de representação no crime de lesão corporal leve praticado nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/24966. Acesso em: 29 ago. 2010.

RUFATO, Pedro Evandro de Vicente. Lei Maria da Penha. Lesão corporal leve. Natureza da ação penal. Com a palavra, o STJ. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2272, 20 set. 2009. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13536. Acesso em: 30 ago. 2010

Sítio do STJ: www.stj.jus.br

NOTAS:

[1] REZENDE, Reinaldo Oscar de Freitas Mundim Lobo. Da necessidade de representação no crime de lesão corporal leve praticado nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/24966. Acesso em: 29 ago. 2010.

[2] REZENDE, Reinaldo Oscar de Freitas Mundim Lobo. Da necessidade de representação no crime de lesão corporal leve praticado nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/24966. Acesso em: 29 ago. 2010.

[3] REZENDE, Reinaldo Oscar de Freitas Mundim Lobo. Da necessidade de representação no crime de lesão corporal leve praticado nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/24966. Acesso em: 29 ago. 2010.

[4] MOREIRA, Rômulo de Andrade. O STJ, a Lei Maria da Penha e a ação penal nas lesões leves - uma nova orientação. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/39171. Acesso em: 29 ago. 2010.

[5] REZENDE, Reinaldo Oscar de Freitas Mundim Lobo. Da necessidade de representação no crime de lesão corporal leve praticado nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/24966. Acesso em: 29 ago. 2010.

[6] RUFATO, Pedro Evandro de Vicente. Lei Maria da Penha. Lesão corporal leve. Natureza da ação penal. Com a palavra, o STJ. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2272, 20 set. 2009. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13536. Acesso em: 30 ago. 2010

[7] REsp 109704 /DF. Relator Ministro Jorge Mussi. Terceira seção. STJ. Publicação DJe: 21/05/2010.

[8] AgRg no REsp 1120965/MG. Relator Ministro Og Fernandes. Sexta Turma. STJ. Publicação DJe: 31/05/2010.

[9] REsp 109704 /DF. Relator Ministro Jorge Mussi. Terceira seção. STJ. Publicação DJe: 21/05/2010.

Felipe Pinto Bruno - Advogado inscrito na OAB/DF, Pós-graduando em Ciências Penais pelo curso LFG - Brasília.

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